1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.


Constituição da República Portuguesa, Artigo 37º

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Os insólitos do IVA

Saiu no Expresso, este artigo que me deixou perplexo. Então a Cerelac paga de IVA 5% e o Nestum 20%. São ambas farinhas infantis. Não é por nada mas cheira-me a marosca.

Sabia que o peso dos impostos é diferente num pacote de Nestum e numa caixa de Cerelac? São ambas papas lácteas infantis, mas têm uma carga fiscal diferente. Pela primeira, paga 20% de IVA, enquanto na segunda beneficia de um desconto no imposto, que se fica pelos 5%.

Porque é que isto acontece? Não há uma razão objectiva. Assim como não se percebe por que razão a Coca-Cola ou a Pepsi também beneficiam de uma taxa de IVA mínima, quando os biberões e chupetas são considerados um luxo e pagam 20%. Um absurdo? Sim, na opinião de dois ex-secretários de Estado dos Assuntos Fiscais e de um antigo director-geral dos Impostos.


A diferença de taxas entre o Nestum e as restantes farinhas lácteas e não lácteas é para o ex-governante socialista João Amaral Tomaz "a comparação mais interessante" no que toca às incongruências no IVA.

Porquê? A resposta soa a óbvia: "São produtos alimentares que se podem considerar sucedâneos". "Não deveria acontecer", reforça António Nunes dos Reis, ex-director-geral dos Impostos e ex-director dos serviços de IVA. E cita mais exemplos, "entre vários": "O peixe e o marisco, os jornais em papel e em edição electrónica ou a manteiga e a margarina". Nestes 'pares' o segundo paga mais imposto do que o primeiro.

Nunes dos Reis alerta para o risco de "distorções de concorrência", pois diferentes impostos em produtos idênticos pode "provocar importantes desvios de consumo". E aponta que, tecnicamente, até são "questões de fácil resolução e várias vezes objecto de propostas de alteração, mas que, por razões que ignoro, não têm tido anuência dos órgãos decisórios".

Amaral Tomaz refere que "há muito que vem sendo pedido para que a questão do Nestum seja repensada", incluindo por ele próprio quando esteve no Governo. E também lamenta "a falta de aprovação até agora".
Rogério Fernandes Ferreira, que esteve à frente da pasta dos Assuntos Fiscais no Executivo de António Guterres, acrescenta à lista de insólitos "um vasto conjunto de bens vendidos nas farmácias, como biberões, tetinas, chupetas, produtos de higiene para recém-nascidos e crianças que não são considerados produtos farmacêuticos nem produtos com fins terapêuticos e, por isso, são taxados a 20%".

A culpa é dos lóbis?
Fernandes Ferreira é incisivo: "Existem, não se deve escamotear, grupos de interesses que se encarregam de 'pressionar' e de veicular as suas opiniões na comunicação social". Mas reconhece que a sua acção é limitada, pois o IVA é "um imposto de matriz comunitária". Ou seja, é Bruxelas que dita a maioria das regras (ver texto relacionado). Nunes dos Reis também admite "a existência de pressões (legítimas) de operadores interessados num tratamento mais favorável".

Já Amaral Tomaz desvaloriza este poder porque, reforça, "a margem de manobra no IVA é, hoje, quase nula". Para o fiscalista, o culpado é evidente: "a existência de mais do que uma taxa de imposto". A que se somam falhas no enquadramento de determinados bens nas listas que discriminam quais são os produtos taxados a 5%, 12% ou 20%. O ex-membro do Governo Sócrates refere que "a maioria das situações 'absurdas' teve origem nas listas iniciais anexadas ao código do IVA e que não foram rectificadas".

Em relação à Coca-Cola, Amaral Tomaz esclarece que não teve responsabilidade na decisão de "enquadrar esta bebida na lista da taxa reduzida". E aconselha que o caso "deve ser analisado em comparação com produtos idênticos". De facto, em Portugal, as águas (sem a adição de outras substâncias), refrigerantes, sumos e néctares de frutos ou de produtos hortícolas, incluindo os xaropes de sumos, as bebidas e produtos concentrados de sumos têm um imposto de 5%.

Nos restantes Estados-membros também há uniformidade na aplicação do IVA nos refrigerantes, nota o antigo governante. Ou seja, dentro deste grupo pagam todos o mesmo. A diferença é que há países que optaram por taxar estas bebidas pelo máximo, enquanto outros, como Portugal, optaram pelo mínimo.

Matar o mal pela raiz
Uma forma radical de acabar com os insólitos seria adoptar uma taxa única de IVA. Hipótese que "foi equacionada e estudada", mas que "não foi adoptada por razões políticas", refere Amaral Tomaz. No entanto, esta via esbarra à partida num impedimento constitucional "que manda onerar os consumos de luxo". Como consequência, aponta Fernandes Ferreira, os consumidores de menores recursos seriam penalizados pois são quem mais compra produtos que pagam o mínimo de IVA. Apesar de a taxa única "ser o ideal para a Administração Fiscal" - simplificava os procedimentos com ganhos de eficiência e redução dos custos de gestão do imposto -, isso não pode pôr em causa o acesso a bens essenciais, reflecte Nunes dos Reis.

Pouco a pouco tem havido alterações. Recentemente, os produtos à base de soja passaram a ser tributados a 5%. Primeiro foram os iogurtes e o leite feitos a partir desta proteína e depois, no último Orçamento do Estado, foi a vez doseitan e do tofu. As cadeiras e assentos para transporte de crianças em veículos automóveis foram outros contemplados.

Mesmo assim, em Portugal parece não existir um caso tão inusitado como a "histórica questão francesa da diferença de tratamento das conservas de ervilhas com frango, que tinham uma taxa reduzida, e das conservas de frango com ervilhas, cujo imposto era superior", recorda, com humor, Amaral Tomaz. "Casos como os que acontecem em Portugal existem na maioria dos Estados-membros", sublinha Nunes dos Reis.

Um estudo sobre mudanças fiscais publicado há poucos dias, encomendado pelo Governo e do qual Nunes dos Reis foi um dos coordenadores, recomenda uma simplificação das taxas, atribuindo o exclusivo dos 5% aos produtos alimentares, com poucas excepções. Contactado, o Ministério das Finanças não comenta este assunto, nem avança se estão na calha mais correcções.

Texto publicado na edição do Expresso de 31 de Outubro de 2009

Sem comentários:

IP