1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.


Constituição da República Portuguesa, Artigo 37º

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Salazar ressuscitado

A principal ameaça para uma democracia civilizada está no comportamento histérico de democratas incivilizados

de: JOÃO PEREIRA COUTINHO
ANTÓNIO DE Oliveira Salazar (1889-1970), ditador durante quatro décadas, ganhou um concurso televisivo como o maior português de todos os tempos. No dia seguinte, camisas negras marcharam sobre Lisboa, tomaram conta do Parlamento e decretaram um novo regime autoritário, de nítida inspiração fascista. O povo saiu às ruas e saudou os heróis. O Partido Comunista foi ilegalizado, as prisões lotaram com presos políticos e os intelectuais optaram pelo exílio. O novo governo, com o apoio do Exército, exige agora que o presidente Lula devolva o corpo de Marcelo Caetano (enterrado no Rio): Marcelo será embalsamado e exibido publicamente no Mosteiro dos Jerónimos como relíquia sagrada, depois da fuga infame a que este último governante foi sujeito durante a Revolução dos Cravos de 1974...
Foi mais ou menos por essa altura que eu despertei do pesadelo, pronto para mergulhar em novo pesadelo. Sim, Salazar ganhou o concurso de TV. Sim, Portugal continua um regime democrático e liberal. Mas, vocês não teriam tanta certeza se lessem a imprensa dos nativos a respeito do fenómeno. Qual o significado da vitória de Salazar, 33 anos depois do 25 de Abril?
A opinião geral não perdeu um minuto de tempo para usar os neurónios. A vitória de Salazar (na TV) prenuncia simplesmente a vitória do fascismo (na vida real). Intelectuais profundos decretaram imediatamente "o fracasso da democracia" e o fim do "sonho de Abril". Académicos respeitados falaram em "ano zero para os neo-Salazaristas". O Partido Comunista, nossa relíquia stalinista, saiu da tumba e avisou os seus militantes para terem muito cuidado, porque "eles andam por aí". No meio da loucura, valerá a pena colocar tudo na sua devida proporção?
Correndo o risco de vestir uma camisa negra e de marchar também sobre Lisboa, talvez seja importante lembrar duas coisas.
A primeira, óbvia, é que Salazar foi escolhido em concurso de TV por 65 mil pessoas. O show foi um flop de audiência e 65 mil só espantam pela sua evidente escassez. Em Portugal, existem mais do que 65 mil Salazaristas. Procurar ver em 65 mil telefonemas o fim da democracia lusa não é apenas ridículo e infantil. É a prova, essa sim preocupante, de que a massa cinzenta de nossos intelectuais e académicos derreteu para lá do tolerável.
A segunda, ainda mais óbvia, é que os 65 mil votos não são exclusivos de Salazaristas. Pessoalmente falando, conheço gente liberal e bem democrática que votou em Salazar para criar polémica. Sobretudo quando a TV do Estado começou por censurar o nome do ditador de sua selecção inicial. Por ironia macabra, a escolha de Salazar pode ser vista como exemplo de liberdade e de luta contra a censura: a censura que Salazar, ontem, e a RTP, hoje, pretenderam aplicar sobre os patrícios.
Na brincadeira dos grandes portugueses, não são os mortos que assustam. São os vivos. Nos últimos dias, eles mostraram que a principal ameaça para uma democracia civilizada está no comportamento histérico de democratas incivilizados.

Jornal Folha de São Paulo, 4 de Abril de 2007


Powered by ScribeFire.

Sem comentários:

IP